08 fevereiro 2006

Para a posteridade

Houve tempos em que queria ser lembrado, falado, apontado como exemplo. Tempos em que me parecia que a minha passagem por aqui deveria deixar um marco, uma marca, na vida das pessoas, na sociedade. Em que me parecia importante não passar anódino, incógnito, em que me parecia importante passar e ficar, mesmo quando já tivesse partido.

Bem entendido, queria ser uma referência positiva. Não me interessava ficar conhecido como um perigoso assaltante ou um diletante assassino em série. Preferia ser relembrado como um artista marcante, um estadista de eleição, um profissional exemplar, modelo para os que viessem a seguir. Isso mesmo, queria ser um modelo, e não estou a falar de moda. Queria ser perene. Alguém de quem, passados os respectivos anos, se comemorasse o centenário da morte, se fizesse uma conferência mundial sobre a obra ou sobre a modelar existência e se fabricassem uns quaisquer biscoitos ou bombons com o seu nome.

Comecei a estudar as hipóteses. Pensei que poderia ser um grande, um exímio, futebolista, o novo Pelé. As vantagens eram evidentes: sucesso, fama, prestígio, modelos e manequins famosas a meus pés, poder, dinheiro, dinheiro a rodos. E se fosse um futebolista da craveira de um Pelé, passados cem anos ainda toda a gente falaria de mim, seria ainda um exemplo para os que dessem uns chutos na bola e contar-se-iam histórias fantásticas de como, certa vez, fintei dez jogadores adversários e o décimo primeiro fugiu para se furtar à humilhação ou da outra vez em que marquei um golo após ter feito uma tabela propositada no apito do árbitro. As vantagens pareciam-me esmagadoras. Do lado das desvantagens só me lembrava de uma, porém decisiva: não sabia jogar à bola.

Não desanimei, contudo. Outras hipóteses se me deparavam: poderia, por exemplo, ser um magistral pianista, um exímio violinista ou um supra-sumo da composição musical. As vantagens não seriam tão evidentes nem esmagadoras como no caso de ser futebolista, mas não eram nada desprezáveis. Considerando que atingia um estatuto de referência, de sumidade, a fama estava garantida, o sucesso e o prestígio também, as manequins talvez não se espojassem a meus pés, mas seria provável que conseguisse granjear alguma atenção nesse sector, e o dinheiro, não sendo a rodos, seria mais do que suficiente. E, claro, em termos de prestígio intelectual, sempre seria outra coisa ser um compositor, um pianista, um violinista célebre do que ser um jogador da bola. Desvantagem, só me ocorria uma: não distingo um dó sustenido de um mi bemol (na realidade, não sei o que quer dizer sustenido nem bemol).

Muito bem, havia que investigar outras possibilidades. A política, a política parecia-me ser uma boa alternativa. Não são exigidas qualidades ou atributos… que eu não possua, ao contrário do futebol ou da música, e, tendo o cuidado de gerir bem a minha carreira e ambição, poderia vir a atingir o estatuto de estadista, quiçá de salvador da pátria, sem pôr de lado a hipótese de poder eventualmente ganhar o Prémio Nobel da Literatura. Vamos lá ver: a fama seria certa, o prestígio, o sucesso e o poder também, as modelos já estiveram mais longe e o dinheiro, bem, o dinheiro, viria em catadupa, assim eu não estragasse tudo com veleidades éticas. Desvantagem: eu tenho veleidades éticas.

Agora o caminho parecia-me claro: filantropo. Teria que ser um filantropo reconhecido mundialmente. Se eu fosse patrono de uma fundação, digamos, com o meu nome, que promovesse a cultura, a educação, a saúde e o bem-estar das crianças e dos idosos, teria prestígio garantido. Claro que teria de ser uma coisa imponente, à escala mundial; não poderia ser uma fundação de vão de escada. Imaginava uma fundação capaz de erradicar, pela sua acção directa e pelo seu apoio à investigação científica, a fome em África; capaz de impulsionar o ensino na América do Sul; capaz de eliminar a gripe das aves e a pneumónica na Ásia; capaz de subsidiar uns artistas plásticos de vanguarda no Ocidente. E pronto, estaria alcançada a fama mundial, o sucesso internacional, o poder ilimitado. As modelos também poderiam ser subsidiadas e o dinheiro, bem, o dinheiro… já o tinha. Desvantagem – que entretanto me ocorrera: eu não tinha dinheiro.

As coisas estavam difíceis. Não é fácil deixarmos a nossa marca na Humanidade. Por momentos, ser um assassino em série diletante ou um perigoso assaltante pareceram-me formas tão válidas como quaisquer outras para figurar na posteridade. Mas foi apenas por breves instantes.

Depois, meditei sobre o conceito: ser um modelo para a Humanidade. E o óbvio atingiu-me como um relâmpago: isso está errado! Respirei fundo, aliviado com o peso que me saía de sobre os ombros. Está errado! Querer ser um modelo para a Humanidade, querer ser lembrado como um exemplo a seguir, é fútil, megalómano e infantil. E estúpido, também. E bastante idiota. Só um completo frustrado se preocuparia em querer figurar na posteridade. Que ridículo! Tal ideia parece própria de um saloio de um futebolista ou de um alarve de um compositor ou de um glutão de um político ou de um alambazado de um capitalista. Ou de um perigoso criminoso ou assassino em série, já agora.

As pessoas, as pessoas que interessam, não se demoram sequer a pensar em tais frivolidades. E a Humanidade não precisa de mais marcas, tão maltratada está já.

Bem, vou agora buscar o meu filho à escolinha de futebol que ainda tenho de o levar à academia de música para as aulas de piano. Abraço.

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