19 março 2006

Pessoas básicas

Eu poderia ter sido famoso, assim tivesse querido. Não quis: a veneração, a idolatria, o culto de personalidade que normalmente acompanham a fama são-me desconfortáveis. O meu carácter discreto e humilde convive mal com tais artifícios. Sou uma alma simples, gosto de privacidade e de passear incógnito pelas ruas. Não me agradaria ser assediado por hordas de fãs sempre que pusesse pé fora da porta.

Eis a razão por que deliberadamente não me destaco dos demais. Eis a razão por que escondo os meus múltiplos talentos. Eu sou assim: modesto, recatado e despretensioso. Claro que me é difícil, por vezes, esconder os meus tão diversificados quanto extraordinários atributos. Tenho sempre de andar atento e vigilante para não me denunciar a mim próprio e para não me destacar dos meus pobres concidadãos não tão bafejados pela Providência no que à acumulação de qualidades diz respeito.

Por vezes, vou na rua, distraio-me e começo a trautear uma música que me entrou no ouvido; embalado, a dada altura já canto a plenos pulmões e completamente compenetrado, e só após alguns instantes reparo que há já uma multidão à minha volta a escutar-me com evidentes surpresa e admiração estampadas no rosto. Apanhado em falta, recupero a minha auto-censura e começo deliberadamente a desafinar (algumas pessoas, mais básicas, coitadas, pensam que eu desafino inadvertidamente…) de molde a afastar as suspeitas que se começam a formar na cabeça dos meus ouvintes de ocasião. De outro modo, por esta altura haveria já muito boa gente a pensar que, à minha beira, o Pavarotti tem um timbre de cana rachada ou que o Frank «The Voice» Sinatra mais parecia, afinal, um gatinho desmamado.

Outras vezes, vou no comboio em hora de ponta e começo distraidamente a desenhar no meu bloco de apontamentos com a minha lapiseira. Distraio-me e deixo vir ao de cima todo o meu talento artístico, de tão embrenhado que estou na actividade de desenhar. Só começo a suspeitar de que algo de errado se está a passar quando vejo uma caterva de cabeças debruçadas sobre o meu desenho, mais uma vez dominadas pela surpresa e admiração, e esmagadas pelo meu talento. De pronto, e para matar à nascença os rumores que começam a circular (qualquer coisa como o Picasso parecer mais um pintor de construção civil quando comparado comigo…), começo propositadamente a desenhar curvas onde deveriam estar rectas e vice-versa, enquanto vou borratando o desenho com o polegar (as mesmas pessoas básicas – e invejosas! - de há pouco, coitadas, pensam que só há tanta gente a olhar para o meu desenho porque, mais uma vez, eu estava a desenhar um motivo para maiores de 18 anos. Tais desconsideração e desdenho pela Arte não me merecem comentários…).

Não se pense contudo que os meus atributos se limitam ao domínio das artes. No que toca a qualidades e dons, eu sou muito ecléctico e poder-me-ia destacar sem quaisquer dificuldades em qualquer domínio da actividade humana. Na escola, por exemplo, foi com grande dificuldade que consegui disfarçar a minha evidente superioridade sobre os meus colegas em qualquer matéria leccionada. E passei agruras, falhando respostas propositadamente nos testes, inclusive tirando negativas aqui e ali, tudo por mor de não querer humilhar os meus amigos nem querer destacar-me da média. Na matemática, por exemplo, em que poderia ter sido sem qualquer dificuldade um novo Pitágoras, fingia não saber quanto é o seno de π, levando ao desespero os meus professores, ou errava propositadamente no cálculo da raiz quadrada de 121. Claro que havia alguns colegas meus (básicos, coitados) que achavam que eu falhava por mera ignorância ou falta de estudo. Mas era esse o preço a pagar pela minha escolha de não me querer destacar dos demais, embora o pudesse fazer facilmente, e eu aguentava-o, estoicamente, com um sorriso nos lábios (e um murro na cara dos meus colegas…).

Já no desporto, por sua vez, a dificuldade seria escolher em que modalidade me poderia destacar: teria sido facilmente um exímio futebolista, um excelso sprinter, um extraordinário ciclista, eu sei lá… Mas não, fiel à minha filosofia de vida, eu deixava-me ficar pelo meio do pelotão nas corridas e jogava apenas medianamente futebol ou outros desportos. Claro que as pessoas, básicas, coitadas, achavam que eu era apenas mais um, sem grande queda para o desporto – a não ser quando, manifestamente por excesso de zelo, eu me espalhava no chão na disputa de uma bola ou a meio de uma corrida…

Enfim, não é fácil este meu caminho. Para alguém cujas qualidades, atributos e dons são em tal qualidade e quantidade, a vida não é meiga. Sobretudo quando se escolhe, como eu o fiz, usar só parcialmente esses recursos, de forma a não destoar da média nem a ser catapultado para a fama, a celebridade, o dinheiro, o poder… A minha alma simples, a minha modéstia inata, a minha humildade congénita não me permitiram outra escolha. Não tive outra saída.

Algumas pessoas, básicas, coitadas, concordam comigo neste ponto: eu não tive outra saída…

1 Comentários:

At terça mar. 28, 01:03:00 da manhã 2006, Anonymous Anónimo said...

tens que começar a escrever menos, ufa!
eu também ando camuflado, passo os meus dias a evitar ser genial, já tenho alguma rotina instituida, e emtranhada.
abraço

 

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